Beth Carvalho, Raça Negra, Péricles, Dilsinho…Como o pagode tem se reinventado sem perder o ritmo?

Foto: Bruno Fioravante/Divulgação

Não há tempo ruim para o pagode. O estilo musical governa o samba desde pelo menos 1978, quando a carioca Beth Carvalho começou a iluminar os artistas do hoje chamado pagode de raiz, ou mais particularmente a partir de 1991, quando a vertente do pagode romântico tomou dianteira na indústria musical brasileira, com o lançamento do primeiro álbum do grupo paulistano Raça Negra. Hoje mais diverso e misturado (inclusive em fusões com outros estilos musicais, como sertanejo, axé, forró, funk, rap etc.), o pagode tem encabeçado parte das preferências populares na onda de lives inaugurada com a pandemia e agora lidera a ainda controversa volta às apresentações presenciais. Somente em São Paulo, estão anunciados para os meses de outubro e novembro shows de mesa (com promessas de distanciamento e outras precauções contra o coronavírus) de Alexandre Pires, Sorriso Maroto, Turma do Pagode, Jorge Aragão, Jeito Moleque, Mumuzinho e Di Propósito. Em setembro, já haviam voltado aos palcos Péricles, Pixote, Salgadinho, Xande de Pilares, Diogo Nogueira, Menos É Mais, Rodriguinho e Belo, entre outros.

Foto: Léo Lima/Divulgação

Mistura de Ritmos

Um dos principais fatores a garantir a permanência do pagode entre as músicas mais ouvidas no país é a cultura hoje dominante do featuring (ou feat), quando um artista convida outro para fazer participação especial numa gravação. Como cada vez mais esses encontros ocorrem entre artistas de gêneros musicais distintos, públicos de nichos diferentes são atraídos simultaneamente e ampliam a circulação de cada um deles. De quebra, no Brasil esse hábito tem criado subgêneros híbridos que ganham apelidos como pagonejo, pagofunk, sambanejo e assim por diante. Nesse pique, por exemplo, o grupo Di Propósito faz sucesso com o pagodão “Pesou o Rolê”, gravado com a funkeira Jojo Todynho e o grupo de axé Harmonia do Samba. O pagodeiro Dilsinho fez parceria pagoneja com Henrique & Juliano (“Sogra”), pagofunk com MC Kevinho (“Rola um Love”) e daí adiante.


O crossover é valorizado a ponto de a funkeira Ludmilla ter lançado um disco só de pagodes românticos (Numanice), além de flertar com o gênero em faixas gravadas com pagodeiros como Ferrugem (“De Rolê”), Thiaguinho (“Amor Difícil, Só Vem!”), Sorriso Maroto (“Não É Por Maldade”), Di Propósito (“Te Amar Demais”) e Vou pro Sereno (“Teu Segredo”).

Foto: Sandro Mendonça/Divulgação

Outra prova do êxito da fórmula mista é dada pelo sambista paulista Péricles, participante da invenção do pagode romântico com o grupo Exaltasamba e dono de uma vitoriosa carreira solo a partir de 2011. Não há fronteiras para ele, que neste ano lançou o álbum de pagodes históricos Minha História – Onde Tudo Começou, em trio com Chrigor (outro ex-Exaltasamba) e Leandro Lehart (fundador do Art Popular e o principal compositor de pagodes românticos dos anos 1990). Sem preconceitos, Péricles grava parcerias com rappers (como Drik Barbosa, em
“Calma, Respira”, e Projota, em “Homem Invisível”), emepebistas (Djavan, “Deserto da Ilusão”, e Liniker, “O Melhor do Mundo”), artistas pop (o veterano “cafona” Luiz Ayrão, “Oxitocina”, ou a banda de rock Biquíni Cavadão, “Janaína/Cotidiano”),
sambistas veteranos (Alcione, “Mangueira É Vintage”, um EP de músicas de Adoniran
Barbosa ao lado dos Demônios da Garoa), sertanejos (Marcos & Belutti, “Perturbado”, Jorge & Mateus, “Trinta Graus”, Marília Mendonça, “Vai por Mim”), funkeiros (MC Livinho, “Já Deu”), forrozeiros (Wesley Safadão, “Fogo na Roupa”) e, claro, pagodeiros (o ex-colega de Exaltasamba Thiaguinho, em “Seja Bem-Vinda”, ou Marcelinho Freitas, ex-Sem Compromisso, em “Ainda Sei Te Amar”).

Foto: Pedro Dimitrow

O rol de misturas musicais pagodeiras é amplo. Thiaguinho gravou “Presente do Céu” com a popstar drag queen Gloria Groove, “Cansar Você” com a diva pop Luísa Sonza, “Tô Indo Embora Também” com a dupla sertaneja Bruno & Marrone, “Miopia Ocular” com o rapper Rael, “Pretinho Tipo A” com o axezeiro Léo Santana, “Serei Luz” com a banda de reggae Natiruts, “Um Dia Bom, um Dia Besta” com a popstar Sandy e “Um Novo Amanhã” com o rapper Edi Rock, dos Racionais MC’s. O grupo Menos É Mais dividiu “Amor Falsificado” com a femineja Marília Mendonça. Ferrugem se encontrou com a rapper Negra Li em “Eu Preciso Ir”. A Turma do Pagode criou o pagofunk “O Brasil Tem Que Te Ver” com MC Kevinho e o forró-pagode “Puxa, Agarra e Beija” com os Aviões do Forró. Dilsinho dividiu “Santo Forte” com o sertanejo Luan Santana. São apenas alguns entre muitos exemplos.

Festa Afro-Brasileira

Foto: Guto Costa/Divulgação

Para além dos sucessos do momento, o pagode tem história no Brasil. Remotamente, o nome surgiu como sinônimo de festa e cantoria entre africanos e afro-brasileiros escravizados e/ou quilombolas, no período colonial. Nem sempre esteve relacionado ao samba, como aconteceu nos anos 1960, quando o gênio caipira mineiro Tião Carreiro criou a vertente do pagode de viola. O termo atrelou-se definitivamente ao samba a partir dos pagodes festeiros do bloco carnavalesco carioca Cacique de Ramos, na segunda metade dos anos 1970.


Celebrado por artistas como Beth Carvalho e Tim Maia, o Cacique ganhou projeção nacional na voz de Beth, que passou a gravar aquela nova geração de compositores com enorme sucesso, em “Vou Festejar” (1978) e “Coisinha do Pai” (1979), ambas de Jorge Aragão com parceiros, “Caciqueando” (1983), de Noca da Portela, “Camarão Que Dorme a Onda Leva” e “Jiló com Pimenta” (1983), de Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz. Nessa safra, consagraram-se o ex-forrozeiro pernambucano Bezerra da Silva e os sambistas cariocas Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra, Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila e o grupo Fundo de Quintal (de onde saíram Arlindo Cruz e Sombrinha). “Pagode de fundo de quintal” virou outro codinome do gênero, por causa do local onde costumavam acontecer as rodas de samba da época. Entre as inovações trazidas por essa turma, estavam a ênfase na percussão, a substituição do surdo pelo tantã, imaginada por Sereno, do Fundo de Quintal, e do cavaquinho pelo
banjo (mais comum até então na country music dos Estados Unidos), por Almir Guineto.

Boom nos Anos 1990

A esse chamado “pagode de raiz”, profundamente carioca, veio se contrapor o pagode romântico dos anos 1990, mais espalhado pelo Brasil, mas com grande concentração em São Paulo e caracterizado pela entrada de instrumentos até então vetados no samba, como teclados, sintetizadores, guitarras, baixos etc. Rejeitado pelos sambistas “puros” e pela elite cultural brasileira, esse novo estilo aproximava o pagode carioca de diversos gêneros da música pop internacional, como o soul da gravadora americana Motown, o rhythm’n’blues e o rock, além da variação nacional
do samba-rock, iniciada por Jorge Ben Jor no fim dos anos 1960. Apelidado pejorativamente de “pagode mauricinho”, era, no entanto, invenção de artistas negros de origem pobre.

Foto: Divulgação

Na enxurrada de “hit makers” surgidos na geração 1990, destacaram-se os paulistas Raça Negra (“Cigana, Cheia de Manias”), Negritude Junior (“Cohab City”, “Tanajura”), Art Popular (“Ôa, Ôa”, “Pimpolho”, “Temporal, Amarelinha, Agamamou”), Exaltasamba (“Telegrama”, “Me Apaixonei pela Pessoa Errada”, “Tá Vendo Aquela Lua”), Katinguelê (“Recado à Minha Amada”, “Inaraí”), Cravo e Canella (“Lá Vem o Negão”), Os Travessos (“Tô Te Filmando – Sorria”), Sensação (“Oyá”), Soweto (“Derê”), Sem Compromisso (“Mariana Parte Minha”) e Eliana de Lima (“Desejo de Amar”), o mineiro Só pra Contrariar (“A Barata”, “Essa Tal Liberdade”, “Mineirinho”), os cariocas Molejo (“Caçamba”, “Cilada”, “Paparico”, “Dança da Vassoura”), Grupo Raça (“O Teu Chamego”, “Tô Legal”) e Os Morenos (“Marrom Bombom”).


Foi a geração 1990 também que ousou iniciar experiências de fusão com ritmos de fora dos domínios fechados do samba. Raça Negra pagodeou rock (o “Tempo Perdido” da Legião Urbana, o “Pro Dia Nascer Feliz” do Barão Vermelho), MPB (“Vida Cigana”, lançada por Tetê Espíndola) e dois discos inteiros de sucessos da jovem guarda. Negritude Junior homenageou Roberto Carlos (Ao Som do Roberto) e transformou o boi-bumbá amazonense de Parintins (“Tic Tic Tac”). Art Popular integrou pagode com música latino-americana (“Vestida de Doida”), moda sertaneja (“Fricote”, gravada com João Paulo & Daniel) e funk (“Requebrabum”). Só pra Contrariar regravou Titãs (“Go Back”), Tim Maia (“Um Dia de Domingo”), Fábio Jr. (“Eu Me Rendo”), Jorge Ben Jor (“Ive Brussel”) e Mamonas Assassinas. Molejo cantou a MPB de João Bosco (“Linha de Passe”). O grupo Só Preto sem Preconceito armou uma versão sambista para o “Rap da Diferença”, lançado pelos funkeiros cariocas MC Marquinhos e MC Dollores. O grupo de rap romântico Sampa Crew inventou o rap-pagode com “Eterno Amor”.

Voos Solos

Foto: Washington Possato/Divulgação

Explorado pela indústria musical (e televisiva) até a completa exaustão, o pagode romântico encolheu a partir de 1998, mas sobreviveu ao baque por intermédio de artistas que desmontaram suas bandas para iniciar carreiras solo. Alexandre Pires saiu do Só pra Contrariar. Belo abandonou o Soweto para o estrelato solo. Do Exaltasamba saíram Péricles e Thiaguinho. Netinho de Paula deixou o Negritude Junior. Rodriguinho emergiu d’Os Travessos. Leandro Lehart ergueu carreira mais experimental a partir do Art Popular. Em 2016, o supergrupo Gigantes do Samba surgiu da reunião de Alexandre Pires, Luiz Carlos (do Raça Negra) e Belo. Poucos grupos persistiram sem interrupção, casos de Raça Negra, Molejo, Pixote e Swing & Simpatia, e outros poucos ascenderam a partir da primeira decadência do pagode romântico, como Jeito Moleque, Da Melhor Qualidade, Revelação, Sorriso Maroto e Turma do Pagode.

Foto: Mauricio Nahas

Um novo renascer das cinzas se consolidou com a volta de “Cheia de Manias”, do Raça Negra, como tema de abertura da novela global A Dona do Pedaço (2019). Aí já havia mais uma geração de pagodeiros, com Ferrugem, Dilsinho, Ludmilla, Mumuzinho, Vitinho, Tiee e Darlan e grupos como Di Propósito, Menos É Mais, Vou pro Sereno, Grupo Clareou, Melanina Carioca e o sul-mato-grossense Atitude 67. Todos praticam o intercâmbio entre ritmos musicais, gravam prioritariamente álbuns
ao vivo e investem tudo no romantismo aprendido com a geração 1990. É sempre
tempo de pagode.

Por Pedro Alexandre Sanches – Matéria publicada originalmente na revista J.P, do Grupo Glamurama.

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