Sobre solo árido de terra batida, os dançarinos gingam projetando as pernas para a frente, por vezes quase com violência, como se estivessem chutando o chão. Os pés calçados por botas batem forte no chão e em poucos segundos a poeira começa a levantar: está instalada a pisadinha (como os passos foram batizados) ou o piseiro (inicialmente o local onde se dançava a pisadinha, hoje sinônimo da própria música dançada).
“Forró pra ser bom tem que ser do interior / a bota vai chamando e a poeira levantou / as mina tudo doida, tudo querendo dançar / o paredão tocando e nós botando pra torar / eiro, eiro, eiro, o povo gosta do piseiro”, cantam (e dançam) juntos Eric Land e Zé Vaqueiro, dois dos muitos astros interioranos na ponta de um fenômeno nordestino que corre o Brasil com mais potência desde 2019, época em que lançaram “O Povo Gosta É do Piseiro” e a dupla Os Barões da Pisadinha estourou nacionalmente.
O primeiro diferencial está exatamente no chão de terra, pó e poeira: a pisadinha é música nordestina do interior, das roças, sítios, fazendas e festas de vaquejada – o videoclipe de “O Povo Gosta É do Piseiro”, por exemplo, foi gravado na Feira do Gado de Ouricuri, cidade natal de Zé Vaqueiro, de 23 anos, no sertão de Pernambuco (Eric Land, de 24 anos, é cearense de Fortaleza). Se fosse possível definir o estilo musical, o caminho retrospectivo partiria de Exu (PE), terra natal de Luiz Gonzaga (1912-1989), inventor estilizador de baiões, xotes e xaxados de dançar colado.
Décadas depois, o gênero ganharia corpo industrial nos anos 1990 com o grupo cearense Mastruz com Leite, sob o nome de forró eletrônico, que se espalhou pelo Nordeste nas décadas seguintes no sucesso de massa de bandas como a paraibana Magníficos, as cearenses Aviões do Forró e Garota Safada (de onde saiu Wesley Safadão) e a sergipana Calcinha Preta, entre outras. Do forró eletrônico ao piseiro, a sonoridade se simplificou em termos instrumentais. Muitas vezes, o fio condutor é dado apenas por voz e teclados no lugar da sanfona que Gonzagão consagrou, e essa característica ajuda a explicar o crescimento explosivo do piseiro no mesmo momento em que estúdios de gravação, no Brasil e no mundo todo, paravam detidos pelo coronavírus.
Em termos estilísticos, as coisas se tornaram mais complexas: no piseiro, é como se o rastapé nordestino se misturasse e se amalgamasse com um leque de outros ritmos musicais brasileiros, amplamente difundidos via internet. O piseiro guarda parentesco com o funk carioca e o bregafunk, o sertanejo do Centro-Oeste, do Sul e de parte do Sudeste, a lambada e o tecnobrega do Pará, o arrocha e a axé music da Bahia, as pistas eletrônicas moderninhas do Sudeste e extravasando para o Caribe das misturas formuladas pela Banda Calypso, dos paraenses Joelma e Chimbinha.
Parece caber de tudo um pouco, no intervalo entre um teclado modesto e uma pisadinha despretensiosa. “Preste atenção, novinha, no que eu vou falar / quica, quica, quica, vai, com o bumbum no chão / quica, quica, quica, com a mão no paredão”, reza “Solinho Agressivo”, de Anderson dos Teclados e Vei da Pisadinha, num videoclipe em que ensaiam passos de pisadinha rodeados por garotas em shorts sumários escondendo bumbuns funkeiros e um paredão sonoro aparentado das aparelhagens paraenses.
Nesse clipe surge também o dançarino e influenciador digital pernambucano (de Salgueiro) Orlandinho, autoproclamado “rei” dos passos da pisadinha. Ele coloca a mão sobre a genitália, como um Michael Jackson cujo moonwalk andasse para frente, levantando nuvens de terra vermelha. Biquínis e um balneário de águas azuis completam o cenário, atirando a um passado distante as imagens de seca e miséria com as quais o Brasil estereotipou historicamente o Nordeste.
Anderson e Vei da Pisadinha estavam em atividade a partir do Ceará desde 2014 e a pisadinha circulava espontaneamente pelo Nordeste há mais tempo, pelo menos desde 2004, pelo trabalho tímido do músico baiano Nelson Nascimento, de Monte Santo. Mas o alcance nacional foi obtido por outra dupla, Os Barões da Pisadinha, a partir de 2019, quando o jogador de futebol Neymar apareceu no Instagram dançando o futuro hit “Tá Rocheda” em Paris.
“Pode crer, você merece um prêmio / de mulher mais bandida do mundo / o coração que é vaga-bundo / vagabundo”, cantava “Tá Rocheda”, por cima da tecladeira dos baianos Felipe Santana Mota e Rodrigo Araújo Neto, que formaram os Barões em 2015, na cidade interiorana de Heliópolis.
Constantemente no topo das paradas das plataformas de streaming, o primeiro escalão do piseiro inclui nomes como o pernambucano (de Serrita) de vozeirão grave João Gomes, que completou 20 anos em 31 de julho, e o cearense (de Campos Sales) Tarcísio do Acordeon (que, como o nome indica, não trocou a sanfona gonzaguiana pelos teclados), de 28 anos.
De modo geral, o piseiro tem se mostrado menos amistoso para artistas mulheres, mas uma das estrelas do gênero é a cearense (de Alto Santo) Mari Fernandez, 21 anos, que trafega entre o sertanejo feminista e a pisadinha, e coleciona 71 milhões de visualizações para o clipe “Não, Não Vou”: “Passa lá em casa, tira a minha roupa, fala que me ama / quebrou a cara, vem quebrar a minha cama”.
O elenco cresce com Biu do Piseiro (paraibano de Campina Grande, 25 anos), Vitor Fernandes (pernambucano de Petrolina, 25 anos), o acordeonista Luan Estilizado (pernambucano de Brejo da Madre de Deus, 29 anos), entre outros. E como de hábito, artistas com mais estrada amplificam o sucesso ao surfar na poeira jovem do piseiro, como o forrozeiro potiguar Raí Saia Rodada ou Xand Avião (ex-Aviões do Forró), que se juntou aos Barões da Pisadinha no megahit “Basta Você Me Ligar” (“mas é só tu ligar pra mim / eu não resisto / eu queria dizer não, mas não resisto”), com quase 400 milhões de visualizações no YouTube.
E, tal como tem acontecido há décadas com o sertanejo, o piseiro vai conquistando o Brasil do interior para os litorais e grandes centros.
Texto por Pedro Alexandre Sanches.
Reportagem da edição 177 da JP, já nas bancas.