A primeira vez foi sutil, mais de uma década atrás. Lembro da sensação de dupla via ao chegar a um encontro de amigos: eu não precisava contar muito da minha vida porque eles provavelmente já sabiam, assim como eu também sabia, pelo que era o começo do Facebook, o que eles andavam fazendo, quem estiveram encontrando, como vinham se posicionando diante das ocorrências do país e do mundo.
Era só o começo.
Fui uma criança que detestava televisão; alimentei, ao longo da vida, certo orgulho disso, uma velada sensação de superioridade por sempre ter preferido os livros às telas. Sensação que foi por água abaixo: escapei da TV, mas não da internet. Hoje, se interrompo uma leitura para procurar uma palavra no dicionário on-line, me vejo perdendo quarenta minutos bisbilhotando a vida de gente desconhecida no Instagram até que alguma postagem de algum livro me lembre de que eu estava, afinal de contas, lendo, e volto à minha página um pouco envergonhada de sequer ter descoberto o significado da palavra.
E não só de observar os outros sobrevive meu vício de internet. Já há alguns anos lembro de ter postado — porque as postagens também se configuraram como uma espécie de memória, a linha do tempo das redes sociais sendo um pouco, de fato, a da nossa vida — que eu queria de volta um pôr do sol que fosse só meu: um instante em que eu estivesse verdadeiramente presente, sem ter o ímpeto de fotografá-lo para exibi-lo aos outros na rede, que eu pudesse gozar do momento e não das curtidas alheias, como se elas me garantissem que o que vivi fora mesmo especial.
Hoje, a coisa se intensificou a tal ponto que é quase como se existir fosse postar. Jia Tolentino, em “Falso Espelho” (editora Todavia), percebe, por exemplo, a necessidade de marcarmos presença, de nos posicionarmos politicamente on-line, como se o engajamento fosse medido mais por um afago público em nossa própria consciência do que pelo que de fato contribuímos fora das redes e que, muito mais que um post, faria diferença para as injustiças do mundo.
Temos, hoje, acesso à vida privada de celebridades, ou, ao menos, ao que elas nos mostram como sua vida íntima, alimentando um sentimento de proximidade que nos diz tanto que qualquer um de nós pode chegar lá quanto que nossa vida ínfima também pode ter, afinal de contas, um sentido superior; e também compartilhamos experiências íntimas, coisas que não necessariamente interessam a outras pessoas, em busca de configurar justamente esse sentido, tecendo, com fotos e afins, uma espécie de narrativa cotidiana da qual somos protagonistas. Um perfil, afinal de contas, não deixa de ser uma personagem de nós mesmos: postamos não o que somos, mas o que gostaríamos de ser. Mas isso, essa exibição de nossos dias atrás da qual gostaríamos de nos ocultar, diz sobre nós muito mais do que gostaríamos. Pois nossos sonhos e desejos também nos caracterizam, embora só cada um de nós saiba, intimamente, a que distância estamos deles.
Essa distância não aparece nas postagens. As redes sociais têm atenuado precisamente a distância entre o público e o privado, entre o que deveríamos guardar e exibir; mas sem o que é só nosso, nos ensina Hannah Arendt em “A condição humana” (editora Forense Universitária), perdemos o lastro; nossas ações perdem consistência, tudo fica superficial.
Há coisas que não precisamos contar a ninguém, que pelo contrário, precisamos preservar. E que, mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos contar. São os nossos tesouros íntimos, dos quais chegamos a ter apenas relances, mas que, justamente, nos fazem ser quem somos.