Maria Homem desmistifica o perdão na era do cancelamento: “Conviver é a arte do impossível”

Onde entra o perdão na era do cancelamento e da polarização? Ou melhor, como é possível perdoar quando o outro vai contra suas expectativas, fere suas crenças e desafia seus valores? Para a psicanalista Maria Homem, em entrevista exclusiva ao Glamurama, “esta é a pergunta do milhão”. O posicionamento explícito do outro pode ser frustrante por revelar algo que não gostaríamos de conhecer sobre aquela pessoa. São aspectos que, por vezes, nos ofende ou machuca. “Esse processo nos obriga a tomar uma posição mais firme a respeito de nossas próprias convicções e de quem somos. O que nem sempre é fácil. Nós também, quem sabe, gostaríamos de ficar mais um pouquinho em cima do muro”, reflete a psicanalista, que também é ensaísta e autora dos livros como “Lupa da Alma: Quarentena-revelação” e “Coisa de Menina? Uma conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo”.

PERDOAR OU NÃO?

“Perdoar é uma palavra de cunho fortemente religioso e ainda carrega uma ideia de que perdoar seria fazer o bem, seria algo a se conquistar no caminho de uma evolução espiritual. Eu gostaria de pensar esse termo ‘perdoar’ em um significado um pouco diferente. E, para isso, vou partir do oposto: não perdoar seria ficar muito apegado a uma certa posição. Ficar identificado a um lugar normalmente de acusação e ligado a um afeto de ressentimento – em que nos desimplicamos de nossas próprias atitudes e nos queixamos (às vezes uma queixa infinita) do que fizeram conosco. ‘Você acabou com a minha vida.’ ‘Você estragou tudo.’ ‘Agi corretamente e você fez tudo errado.’ Ou seja, estou do lado do bem e você, do lado do mal. Nesse sentido, eu diria que talvez tenhamos que sair desse círculo vicioso de um sempre jogar a culpa no outro. Perdoar é difícil, pois implica em se responsabilizar, compreender as situações como cadeias complexas de eventos em que todos os pontos têm suas responsabilidades.”

“A incapacidade de perdoar diz que não conseguimos sair de nosso próprio umbigo e olhar essa teia complexa de relações com o olhar de um drone. Estamos presos ao nosso próprio ‘eu’ em sua posição de queixa. O que não quer dizer que devemos aceitar tudo o que nos é feito porque por vezes somos de fato atacados, agredidos e injustiçados. Devemos ter senso crítico e defensivo.”

PERDOAR x ESQUECER

“Dito de forma bem sintética, não existe esquecimento para o aparelho psíquico. Não há uma chavinha on/off. Não controlamos de fato o que nos afeta ou aquilo que deixa de nos afetar. É preciso fazer um longo trabalho de elaboração, de simbolização do que nos aconteceu para ultrapassar nossas dores. A subjetivação é um trabalho contínuo e, em grande medida, inconsciente. Normalmente, só ao final saberemos que aquilo que nos doía tanto não nos toca mais. Isso não é esquecer. É elaborar. Perdoar tem mais a ver com todo esse trabalho do que com esquecimento.”

PERDOANDO O “CANCELADO”

“Paradoxalmente, não perdoar pode vir de um lugar de superioridade e identificação com o juiz severo que se esconde por trás de todo ‘supereu’ cruel e levemente sádico. Também pode ser uma identificação com o frágil eu masoquista que se relaciona com aquele que foi cancelado e não pode de forma ser reabilitado em seu estatuto de legítima existência. Como diria Sartre, o inferno são os outros. Mesmo que o outro seja também via de amor, como muitas vezes se responde a isso, não resta dúvida de que o outro nos faz sofrer e às vezes queremos explodir o barco. Conviver é a arte do impossível.”

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