O que será do feminismo em 2022?

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Estamos na reta final de mais um exaustivo ano de perrengues sociopolíticos intermináveis. Perrengues esses que sempre existiram, mas foram inegavelmente potencializados pela pandemia do COVID-19. Das coisas que mais vimos e que mais impactam a saúde mental de quem tem bom senso e real empatia, está a fome, a violência doméstica e o descompromisso público com os gritos cada vez mais altos da desigualdade social que se aprofunda de maneira fatal.

Parece que há urgências tão maiores e mais significativas para serem discutidas do que as picuinhas e arestas de um dos movimentos sociais que mais tem concentrado em si, debates fundamentais para as transformações que sim, estão ocorrendo no mundo todo, apesar dos incontáveis pesares sociais, não é mesmo?

Mas só que não. 

Acertar os passos das lutas sociais por emancipação é uma das tarefas mais essencialmente importantes que devemos abraçar nesse momento.

Em 2015 tivemos a Primavera Feminista, que, só na capital paulista, reuniu cerca de 15 mil mulheres. Antes disso, em 2013, o Feminismo Negro começava seu trabalho de parto para trazer à luz o resultado do trabalho árduo feito pela geração de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Tereza Santos e tantas outras brilhantes intelectuais e militantes negras que pavimentaram os caminhos para as mulheres negras, embora ainda precariamente e de forma limitada, pautaram o debate nacional, falando por si mesmas, em primeira pessoa. 

A força do feminismo negro é uma somatória da força de diversas mulheres que ficaram de fora de um movimento que tomou para si, uma centralidade que nunca lhe pertenceu, simplesmente porque a pluraridade é humana, como nós mulheres também somos. 

E a opressão de gênero ou, o popularmente conhecido machismo, é estrutural e atinge a todas nós, em maior e menor escala, guardadas as devidas minúcias que a interseccionalidade, enquanto ferramenta de análise, tratou de explicitar. Somos negras, mas também somos indígenas, ciganas, latinas, pobres, periféricas, lgbtqia+, campesinas, mães, não-monogâmicas, espiritualistas, atéias ou religiosas, donas de casa, ambulantes, etc., de norte a sul do país e nas mais variadas formas de pertencimento e existência.

E essa pluralidade, que é a essência da beleza humana ou a diferença que nos enriquece mas que foi historicamente usada para nos convencer de que o que difere de nós é impróprio e passível de ser combatido, passou a pleitear seu espaço na luta, na vida, nas benesses e no desenvolvimento social. 

É lindo ligar a televisão e ver no centro do Roda Viva (programa semanal da TV Cultura), a figura de uma jovem mulher, altiva, e significativa liderança indígena falando por si mesma, pelo seu povo e sua cultura, sem precisar de intermediários, independentemente de se tratar de uma ativista ou militante feminista ou não. Sabemos que muitas conquistas da luta feminista é usufruída, atualmente, por mulheres que não são feministas. E isso é ótimo. Escolher ser ou não ser feminista também é uma conquista, muito embora, na minha modesta opinião, não ser feminista é uma escolha imprudente, uma vez que a densidade constitui uma arma quando o assunto é pressão pública por direitos.

É igualmente gratificante ver o alvoroço público da mídia em torno de uma Chimamanda Ngozie ou de uma Conceição Evaristo, mulheres negras assumidamente feministas e atuantes escritoras que inspiram mulheres de todas as raças, idades, credo religioso e classe social. Isso é uma conquista coletiva, sim, mas tem muito do grito de Lélia Gonzales, a primeira feminista negra a se tornar pública e denunciar o racismo no feminismo e o machismo no movimento negro brasileiro, e tem muito de Sujourner Truth que corajosamente parou um Congresso excludente que se dizia “pelo direito das mulheres” com a célebre pergunta: 

“E eu, não sou uma mulher?”

Agora, o que não é uma conquista, mas, sim, um empecilho na união e fortalecimento das lutas de todas as mulheres é a proliferação da ideologia e prática da supremacia branca ditando regras e promovendo um backlash (contra-ataque), consciente ou inconsciente, disfarçado de luta por emancipação e empoderamento de mulheres. E isso é o tão falado e criticado Feminismo Branco. Essa expressão soa problemática porque pressupõe um antagonismo ao Feminismo Negro. E não é. 

O Feminismo Negro é uma vertente ou uma expressão da luta universal de mulheres. 

O feminismo branco é um “cacoete”, é uma expressão da adulteração ou da colonização comportamental do racismo, atuando em um grupo específico – o de mulheres brancas – de maneira perigosa para o grupo específico em questão e para as outras mulheres não-brancas.

Tanto que só neste ano, duas publicações importantíssimas chegaram ao mercado editorial do mundo todo trazendo alvoroço e suscitando acaloradas discussões (e até perseguições). 

A autora e editora chefe do site Jezebel, que foi diretora executiva da Vogue norte-americana e editora sênior de Marie Claire, Koa Beck, com seu excelente “Feminismo Branco: das Sufragistas às Influenciadoras e Quem Elas Deixam para Trás”, da editora Harper Collins, destrincha as artimanhas da supremacia branca aplicadas a um suposto feminismo, que não é apenas excludente, mas também ineficiente porque é palatável. 

Em uma linha mais profunda e menos “paciente”, a advogada, escritora e feminista paquistanesa Ráfia Zacária se declara “Contra o Feminismo Branco” (editora Intrínseca), contando experiências pessoais de exclusão e racismo que impactaram de maneira negativa sua vida pessoal e profissional.

Ou seja, mulheres não-brancas do mundo todo se levantam contra o racismo e as práticas típicas da supremacia branca que se instalaram na luta feminista. Isso impõe necessariamente um novo caminho de luta por emancipação de mulheres, tendo em vista que são os grupos que compõem as estatísticas mais grotescas de violação de direitos e liberdade de usufruto de seus corpos, que estão se levantando e apontando que, dentro do próprio movimento de mulheres, as violências se repetem. 

Nem toda feminista branca é consciente do estrago que causa, muitas são puramente desinformadas ou assimilaram o discurso incompleto dos meios de comunicação. Mas há um grupo que não apenas é consciente, como manipulador o bastante para se passar por grande defensora das mulheres, enquanto invalida a luta e manipula as conquistas para uso individualista.

Ser contra o feminismo branco não é ser contra mulheres brancas até porque há mulheres não-brancas reproduzindo as práticas racistas no seu cotidiano, e violentando mulheres do mesmo grupo social. Ser contra o feminismo branco é ser contra essas práticas que emulam antirracismo e evocam emancipação e empoderamento, mas que, nos bastidores da vida pública ou nas ações cotidianas, agem exatamente do mesmo modo opressor e usurpador que os homens (especificamente os brancos), fortalecendo, assim, as estruturas que precisamos combater.

Curiosamente, em “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire traz importante alerta sobre uma figura peculiar que se desenvolve no bojo das lutas sociais: o subopressor, ou aqueles que, mesmo sofrendo os efeitos das estruturas opressoras, absorvem tão profundamente as práticas violentas e as reproduzem visando ganhos pessoais.  

Não posso (e se pudesse não o faria) falar por todas. 

Mas suponho e sugiro que pensemos que, agora sim, talvez estejamos diante da quarta onda feminista: a verdadeira luta antirracista das mulheres que entendem que as opressões são amigas e colaboradoras mútuas de longa data.

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