Dias, meses, anos, décadas… Não há como negar o vai e vem de tendências através do tempo, seja na moda, na política e, especialmente, no comportamento. Nesse momento quase pós-pandêmico, com a vacinação de vento em popa e a vida começando a voltar ao normal, novos sentimentos e prioridades se apresentam. Ao se deparar com a morte em massa e outras perdas por conta da Covid-19, a população mundial de repente se viu diante da urgência de aproveitar o aqui e agora. Não por acaso, um acrônimo surgido em 2010 voltou com força total e com um novo significado. Yolo – you only live once (ou, você só vive uma vez) – segue na linha do carpe diem e instiga as pessoas a curtirem o presente.
Questionamentos como ‘para que trabalhar tantas horas por dia?’, ‘estou fazendo o que realmente gosto?’, ‘aqui é o lugar em que escolheria morar?’, entre tantos outros, ganharam espaço na mente das pessoas que, sem aviso prévio, se viram confinadas dentro de suas casas, acuadas por um vírus desconhecido e perigoso. “Com a pandemia a gente se aproximou muito da finitude. Todos nós vivenciamos lutos, seja por pessoas que perdemos, seja por oportunidades que foram canceladas. Nessa hora, a gente para pra refletir e entrar em contato com perguntas existenciais. O Yolo, embora já exista faz tempo, ressurgiu com nova roupagem. Ele nos lembra que a vida é finita e não devemos desperdiçá-la com o que não interessa. É o oposto de sobreviver sob estresse contínuo e só parar para se cuidar porque entrou em burnout”, explica a especialista em desenvolvimento humano Ana Raia.
“Passaremos por uma média de 20 experiências de dor durante a vida. E não são necessariamente as empresas as responsáveis por todas elas, a gente já traz esses problemas de casa. Claro que ambientes tóxicos acabam potencializando nossos processos de adoecimento”
Mariana Clark, Psicóloga
Quando se fala que ‘só se tem uma vida para viver’, é como dizer ‘vou viver isso aqui da maneira como eu acredito’. Quem nunca pensou em chutar tudo para o alto e se jogar em um sonho, que atire a primeira pedra. Períodos de crise como o que vivemos sacodem as estruturas de uma maneira muito clara. “O que vimos nos últimos dois anos foi o esfacelamento da maneira como nos relacionamos com política, casamento, educação… Com todas essas coisas com que nos relacionávamos de um jeito já estabelecido. Como as bases que nos faziam nos comportar desse jeito tremeram, surgiram brechas para começarmos a acreditar que há possibilidade de viver a vida tal qual gostaríamos”, diz Michel Alcoforado, antropólogo e sócio do Grupo Consumoteca.
Ele ressalta outro ponto importante que é uma visão quase niilista da vida entre os millennials e a geração Z: “Como o mundo agora muda em alta velocidade, sobretudo nas camadas médias urbanas, você tem a liberdade de viver a vida que imagina. Os sentidos que nos foram passados se desfazem. A vida não faz mais tanto sentido. E o Yolo ressurge quase como um chamado para você inventar um sentido para viver, encontrar um desafio para si mesmo”.
“O Yolo nos lembra que a vida é finita e não devemos desperdiçá-la com o que não interessa. É o oposto de sobreviver sob estresse contínuo e só parar para se cuidar porque entrou em burnout”
Ana Raia, especialista em desenvolvimento humano
Países desenvolvidos como os Estados Unidos, seguindo a lógica de deixar para trás o que não tem propósito, estão em meio a uma onda de pedidos de demissão e uma desesperada corrida atrás dos sonhos, batizada de The Great Resignation. Mas, afinal de contas, é possível viver como se não houvesse amanhã? Mariana Clark, psicóloga especializada em perdas e saúde mental, pondera: “Temos que tomar cuidado porque há uma tendência de responsabilizarmos o trabalho por 100% das nossas dores e frustrações. Pesquisas indicam que nós, indivíduos, passaremos por uma média de 20 experiências de dor durante a vida. E não são necessariamente as empresas as responsáveis por todas elas. Na verdade, a gente já traz esses problemas de casa. É importante separar o joio do trigo. Claro que ambientes tóxicos acabam potencializando nossos processos de adoecimento”.
Para Alcoforado, a pandemia trabalhou no apagamento de duas coisas que eram fundamentais para nós: o futuro, como mola de projeção para o que queremos fazer, e o passado, por que não encontramos ninguém que tenha vivido uma crise como esta antes. “Aí o jeito é dar conta de inventar um presente satisfatório”, fala ele, que ressalta o crescimento do consumo como válvula de escape: “A lógica de que o consumo constrói um presente prazeroso é um dos elementos fundamentais neste momento e está inserido no conceito de Yolo. As pessoas não estão conseguindo lidar com a quantidade de problemas que a vida vem apresentando, então, tudo o que o dinheiro puder comprar para se ter uma experiência positiva, já basta”.
“As pessoas não estão conseguindo lidar com a quantidade de problemas que a vida vem apresentando, então, tudo o que o dinheiro puder comprar para se ter uma experiência positiva, já basta”
Michel Alcoforado, Antropólogo
Jogar tudo para cima para correr atrás do sonho não é uma meta inalcançável em países ricos, no entanto, no Brasil, com milhões de desempregados e níveis de pobreza nas alturas, adotar o Yolo como estilo de vida definitivamente não condiz com a realidade. “Mas podemos aplicar esse conceito em diferentes áreas. Não preciso mudar de emprego para poder começar a apreciar o que eu tenho, sejam minhas relações, seja meu cotidiano. O Yolo pode ser simplificado. Como posso experimentar minha existência da melhor forma possível e dentro dos meus recursos? Aí acho que ele entra como um grande convite para apreciar a vida. Pode soar clichê, mas no fundo as pessoas passam por ela sem prestar muita atenção. Descobrir o que te define, como você se enxerga e como impacta as pessoas com quem se relaciona. O Yolo, com uma certa liberdade poética, pode nos aproximar do que realmente importa, da nossa essência, para que a gente consiga viver com mais coerência”, conclui Ana Raia.