No Brasil, empreender é difícil, empreender sendo mulher é mais ainda, e se for negra, isso se torna quase que impossível. Mas, apesar das adversidades – econômicas e sociais – Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, maior evento de cultura negra da América Latina, tem conseguido se destacar neste cenário pouco propício, principalmente pelo crescimento e reconhecimento de seus projetos. No ano em que completa 19 edições, a iniciativa será ampliada e vai se tonar a PretaHub, aceleradora do empreendedorismo negro com foco em criatividade, inventividade e tendências, e que será dividida em cinco diferentes atividades.
Adriana, que em 2017 foi eleita uma das 51 pessoas negras mais influentes do mundo com menos de 40 anos pela organização Most Influential People of African Descent (MIPAD), bateu um papo com Glamurama para falar sobre as novidades, os desafios do empreendedorismo feminino e negro, e de como o atual governo do Brasil tem influenciado diretamente – e negativamente – na vida da população negra: “A gente sabe quem é o inimigo, um governo que não é inclusivo, pelo contrário, traz à tona o que é o racismo no Brasil.” Ao papo! (por Fernanda Grilo)
Glamurama: O que melhorou e piorou nesses anos de empreendedorismo voltado aos negros?
Adriana Barbosa: A abolição aconteceu há 130 anos e o que fez a população negra sobreviver foi o empreendedorismo. O Brasil é o segundo país na Terra com maior número de negros, e essa é uma potência de trabalho e consumo. Mas, sempre olho em volta com atenção para ver como posso transcender a vulnerabilidade e o preconceito para chegar às esferas mais altas.
Glamurama: O que fazer para que os negros atuem em posições que ainda são majoritariamente ocupadas por brancos?
Adriana Barbosa: As empresas precisam viver a diversidade e não só falar dela, vivenciar isso de maneira mais aprofundada. Não é só contratar negros, mas estar preparada para falar com os envolvidos nessa estrutura de forma geral, como comunicar esse posicionamento interna e externamente, incluir no desenvolvimento de produtos. A cadeia de valor tem que ser mais inclusiva. A gente tem falado, mas tem que viver mais ela.
Glamurama: O que você pode destacar na inventividade e criatividade vinda dos negros?
Adriana Barbosa: O que percebo com o olhar de observadora apenas – sem verdade absoluta – é que a população negra vem de uma matriz africana. Os portugueses, quando foram buscar mão de obra escrava olharam para mais de 50 países e escolheram aqueles que eram os de “saberes”, em que a população tinha conhecimento em design, arquitetura, mineração…. Muitos escravos que foram trazidos para cá eram reis e rainhas intelectuais. O que o Brasil tem hoje é fruto disso e não tem como ignorar essa matriz.
Glamurama: Por que o foco das suas iniciativas são as mulheres negras?
Adriana Barbosa: Porque está na base da pirâmide quando pensamos em desigualdade. São os piores índices, sempre, mas que tem puxado essa história de empreendedorismo negro somos nós. Por exemplo, as negras alforriadas que usaram tabuleiros na cabeça para venderem produtos lá trás. Elas faziam isso para comprar outras alforrias. A ideia da FeiraHub é torná-las mais qualificadas, olhar para isso com potência e contribuir para o país.
Glamurama: O governo atual tem influenciado a vida e o trabalho dos negros?
Adriana Barbosa: Sim, de forma direta e negativa. A questão da discriminação está muito acentuada, e esse governo tem se mostrado extremamente racista. A gente sabe quem é o inimigo, um governo que não é inclusivo, pelo contrário, traz à tona o que é o racismo no Brasil.
Glamurama: Como se sentiu ao ver o Presidente falar que o exército não matou Evaldo dos Santos Rosa (caso em que o músico foi assassinado com 80 tiros no Rio de Janeiro)?
Adriana Barbosa: Doeu na minha alma. Não me sinto segura por conta da cor da minha pele. Essa questão do “engano”, também mata muitas pessoas que estão por perto. Pensa no absurdo que é isso! Pra onde a gente vai caminhar para o futuro?
Glamurama: Como vê essa polarização do Brasil?
Adriana Barbosa: Esse é um assunto complexo. Em algum momento iremos mais para o centro, ficaremos mais equilibrados e talvez essa situação seja necessária pra sabermos quem a gente é. Atualmente, a população se reconhece negra e fala: “essa é a minha história”, mas é preciso ter um momento que o radicalismo vai aparecer. Sinto que estamos caminhando para o diálogo.
Glamurama: O governo cortou verba da cultura, acabou com o Ministério da Cultura. Como vê essa questão?
Adriana Barbosa: Quando você tira a cultura de um povo, você o mata. Vejo nisso uma grande forma de controle social, mas por outro lado existe a resistência e ela vai continuar. Pode ser menor, mas vai…Quanto mais oprime, mais resiste. Não reconhecer a cultura como parte do desenvolvimento e como mola propulsora de uma economia criativa e plural, mostra uma grande falta de estratégia do governo.
Glamurama: A Feira Preta e seus projetos já tiveram (ou têm) apoio do governo?
Adriana Barbosa: A Secretaria Municipal de Cultura é nossa parceira, mas não há relação financeira. Eles nos ajudam na divulgação, co-realização do evento e na busca por espaço. Ano passado tivemos 50 mil pessoas e muito em função das parcerias.
Glamurama: Quando percebeu que a Feira Preta virou um movimento social e foi além da venda de produtos?
Adriana Barbosa: Logo no primeiro ano, quando levamos cinco mil pessoas na Feira. Ali ficou claro que tinha uma lacuna a ser preenchida. No início tivemos muitas negativas de ocupação de espaço, depois descobrir o modelo para manter o negócio “vivo” enquanto empreendia. Até cheguei a quebrar. Mas, foi só em 2008 que entendi realmente que era empreendedora, até então me achava apenas uma entusiasta. Passei por muitos processos até assimilar esse ecossistema e a Feira começar a se projetar nesse lugar.
Glamurama: Em quem você se inspira atualmente?
Adriana Barbosa: Nas mulheres da minha família, minha filha é dona de si (Clara, 6 anos) e me traz questões importantes que me fazem pensar e agir. Também tem a Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro e a Oprah Winfrey, que para mim é a grande empreendedora negra do mundo. Para a Feira Preta ser o que ela é, os negros tiveram que entender nesse lugar de potência. Hoje, as negras estão com cabelos volumosos em sua luz máxima, sabem quem são e estão prontas para lutar. Quando vemos personalidades com grande poder de influencia se declarando negro, como foi o caso do Neymar, isso influencia muito lá na ponta. Imagina o menino da periferia se identificar com o Neymar? A transformação é absurda, irreversível.
Glamurama: Quais suas perspectivas para a PretaHub?
Adriana Barbosa: A PretaHub olha para quem empreende e quem consome. Nela temos cinco programas: Afrolab, Afrohub, Festival Feira Preta, Festival Pretas Potências, Festival Ressignificativo da Abolição Inconclusa e Conversando a Gente Se Aprende, todos eles dentro de um conceito maior que chamamos de Afrofuturismo, focado em como se projeta na vida a partir dos nossos ancestrais, no olhar para frente, mas sem destacar do nosso passado, algo que nos trouxe aqui e que foi construído ao longo desses 18 anos.
A PretaHub terá cinco principais atividades: Afrolab – programa de apoio, promoção e impulsionamento do afroempreendedorismo; Afrohub –aceleração de empreendimentos negros com foco na decodificação dos códigos da internet para o uso das redes sociais para o crescimento do negócio; Conversando a Gente Se Aprende – diálogos criativos com instituições privadas, públicas e marcas para sensibilizar e promover a cultura da diversidade racial dentro da organização; Festival Pretas Potências – para ressaltar a força criativa e inovadora da comunidade negra no passado, presente e futuro, além do Festival Feira Preta – maior evento de cultura negra da América Latina que, em sua última edição, recebeu mais de 50 mil pessoas.
Glamurama: Como acabar com o preconceito? Se sente otimista em relação à mudança na sociedade e igualdade?
Adriana Barbosa: Histórias reais passam a resignificar o olhar. Uma vez, convidamos uma historiadora que contou toda a história da humanidade, desde o homo sapiens e as mulheres que estavam ali entenderam o seu lugar e a sua potência. Precisamos disso.
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